CORAÇÃO LIBERTO
Com o cantar do galo ao alvorecer, muitos irmãos eram tomados pelo desamino e, apesar de ser o prenúncio de um mais um lindo dia, a noite era o período que nos propiciava um maior alento. A dor no coração era imensa, maior que a dor que o corpo físico poderia suportar, pois era quase impossível encontrar a alegria de viver naquelas condições; quando um sorriso estampava a face de alguém, certamente era porque estava ocultando um sentimento de angustia dentro de si. A esperança da tão sonhada liberdade se perdia a cada brilhar do sol, dissipando a pouca fé que restava nos corações dos jovens crioulos.
Quando o sol finalmente se elevava sobre o horizonte, a sua luz refletia nas almas dos irmãos escravizados a condição que cada um se propusera ao aceitar a alusiva experiência reparatória. Sob o calor da opressão e do preconceito um longo dia de martírio iniciar-se-ia; irmãos seriam submetidos a mais uma jornada de intenso labor na lavoura sob o comando das impiedosas chibatas. Trabalhar apenas não era o suficiente, o cárcere bendito tinha que ser fortalecido sob as chagas que marcavam o escuro tom de nossa pele. Sangue, suor e lágrimas escorriam sobre o brilho da tez negra, o ardor purificava a alma e a redenção era o que nos faltava. Mas, como entender a justiça divina sem revoltas, sem rancores e principalmente sem compreender os motivos que nos colocara naquele estado de míseros servos da escravatura?
Rubro permanecia o coração batendo incessantemente em nosso peito, mas o difícil era controlar o instinto de um Capoeira aliado a força da juventude que alguns irmãos conquistaram diante da labuta bendita. Então, como libertar o coração de um povo sem cometer as mesmas atrocidades praticadas por nossos algozes?
Com os punhos acorrentados e presos ao tronco, irmãos eram duramente açoitados até suas forças se esvaírem. Eram tomados como exemplo para os demais membros de um povo cativo, a fim de que tivessem os seus ânimos contidos, reprimindo-os dentro de seus corações.
Diante daquela agonia, percebendo que um de nossos irmãos estava quase desfalecendo ante ao suplício a que era submetido, pedi para assumir o seu lugar no tronco, pois a dor da perda de um irmão era maior que a dor irradiada em nosso corpo de provas. Aquele irmão foi liberto do tronco e as correntes passaram para os meus punhos. Segurava cada elo da corrente apertando-os com toda força que existia em mim e, a cada golpe da chibata desferida em minha pele, uma luminosidade à minha frente se tornava mais nítida. Logo, esta luz revelaria a presença do Espírito de uma bondosa velhinha, a vó Genoveva, aquela que com poucas palavras me confortava, fazendo-me esquecer de toda dor que sentia no íntimo da minha alma.
Recordo-me claramente das palavras proferidas pela vozinha, naquela delicada situação:
─ Sois vós, inúmeros irmãos, poder-vos-eis revezar no tronco. Cristo era um só, e sozinho suportou toda a dor, toda a humilhação e até mesmo a traição. Crucificado foi, mas antes de partir para ”acolá” perdoou todos os seus algozes, aquele que o traiu e também aquele que o negou nos momentos que mais precisou.
Da cruz Cristo se libertou, entretanto muitos ainda querem crucificá-lo dentro de seus corações. Faça da sua Fé o caminho para libertação e o Amor a ferramenta para conquistar a liberdade.
Estas palavras muito me fortaleceram, fazendo com que suportasse até o fim a sevícia do mundo terreno. Dor alguma conseguiu fazer com que a minha fé se abalasse, resisti firmemente até a última chibatada. Ao termino, percebi que meu coração havia sido liberto de todas mazelas do passado.
No dia seguinte, o coronel da casa grande que tudo presenciara, pediu para que me levassem à sua presença e apenas uma pergunta me fez:
─ O que faz um Negro livrar outro negro do troco, assumir seu lugar, ser surrado e ainda manter o semblante sereno como se algo o felicitasse?
Então, poucas palavras foram suficientes para lhe responder e ganhar sua a confiança:
─ A vida é eterna, mas sem o Amor para preenchê-la, tornar-se-ia um imenso vazio e a Felicidade deixaria de existir.
Pai Jacó (Espírito) – Yssao (médium)